sábado, 7 de julho de 2007

Padre iniciado no Candomblé


Importante posição ecumênica deste padre que mostra sua visão sobre o Candomblé como religião compatível e complementar para o benefício do ser humano; os exageros da Igreja e sua posição atualizada que resgata a legitimidade do Candomblé através da Carta de Paulo VI - Africae Terrarum.
Paulo "Olúsinadé" Botas, 56, é padre, teólogo, doutor em filosofia, militante de movimento ecumênico, estudioso, pesquisador e iniciado no Candomblé, como Ogã de Ogum no Ilé Axé Opô Afonjá, em Salvador, pela Iyalorixá Stella D'Oxossi.
Tem em sua conduta e no seu trabalho uma visão e posição ecumênica, no sentido que as pessoas rompam seus preconceitos em relação às religiões africanas e entendam serem religiões complementares e compatíveis, para o benefício do próprio ser humano. Para tanto, coloca de forma clara e inequívoca, situações que contribuíram para o distanciamento destas religiões co-irmãs, bem como o resgate da legitimidade do Candomblé como religião, dos exageros da Igreja para atingir seus objetivos de religião superior e oficial nos países que entrou com seu processo evangelizador, citando e dando a devida atenção, ao documento oficial do Papa Paulo VI, de 1967, o qual valoriza a religião africana em seu documento oficial - Africae terrarum - Terras das África, no qual reconhece a religião africana como positiva e não mais como religião não-cristã, até mesmo porque Cristo veio ao nosso mundo, alguns milhares de anos após a existência desta religião. Mostra assim, que é Divino as diversas culturas e religiões, nos mais diversos cantos da terra. Todo material que segue, está contido em seu livro - Xirê , A ciranda dos encantados - publicado pela Editora Ave-Maria, em 1997, separado por temas e dos quais pincei estes conteúdos.
"Quando o profeta nos questiona: "Acaso não temos um mesmo Pai para todos nós? Não nos criou um mesmo Deus? Porque trabalhamos tão perfidamente uns contra os outros? (Malaquias 2,10) - Deus quis que assim fosse...se não, nos teria criado um só. Quis Deus que muitos fossem seus nomes e manifestações, para que houvesse uma partilha permanente entre os homens e mulheres, de todos os tempos e lugares, para se enriquecerem mutuamente com as suas maneiras múltiplas de buscá-Lo. O objetivo é ampliar o coração das pessoas, que o único caminho para a paz, é reconhecer que Deus nos deu, na sua infinita criação, uma diversidade e pluralidade de expressão, nas múltiplas culturas e humanidades. Todos os orixás, os cristos, os budas, os krishnas, os maomés, os tupãs e tantos outros que moldamos em linguagens humanas não esgotam a força espiritual de cada um e de todos, ainda que, na nossa miopia, possamos acreditar que encontramos, no nosso momento histórico, o verdadeiro deus. Não podemos deixar para nosso filhos e filhas esse espólio horrorendo e asqueroso de guerras santas, de perseguições sem limites.
O professor Cavali-Sforza, da Universidade de Stanford, declarava para a revista Veja, em 18 de janeiro de 1995, que o processo de humanização, ocorreu na África e hoje todos os seres humanos do planeta descendem dos africanos. A Folha de São Paulo, de 28 de abril de 1995, noticiou as conclusões de cientistas americanos, nas revista Science, que "o uso de ferramentas e o surgimento de relações sociais entre seres humanos começaram na África e não na Europa, como se pensava até agora". Somos todos africanos de origem. Homens e mulheres de todos os cantos da terra, a partir do seu berço africano foram reinventando seus mitos, suas lendas, seus deuses, suas comidas, suas festas, suas danças e suas músicas na busca incessante de transcender cada vez mais e se perpetuar na história humana pela ancestralidade. Na tradição religiosa, a pedra ocupa um lugar de qualidade, existe entre a alma e a pedra uma estreita relação. Quando o culto se celebra sobre a pedra, não se dirige à própria pedra, mas ao deus que a tem como lugar de moradia. Jacó fez de uma pedra um travesseiro para dormir. E sonha com uma escada cujo topo chegava aos céus e pela qual os anjos de Deus subiam e desciam. E por cima dela estava o Senhor que lhe revela ser Deus de Abraão e de Isaac, seus ancestrais. Jacó, quando desperta, proclama que Deus estava naquele lugar. "Quão terrível é este lugar! Esta não é outro senão a casa de Deus; esta é a porta dos céus" então levanta-se de madrugada, toma a pedra em que repousara cabeça, erige-a em coluna e derrama azeite sobre ela. E chama o lugar de Beith-el - a casa de Deus (gênesis, 28, 10-22). É bom lembrar que, até poucos anos, a celebração da missa era realizada sobre a ara, uma pedra colocada numa cavidade sobre o altar, onde se encontravam as relíquias dos mártires. Ainda o que foi dito à Pedro. Pedro, tu és pedra, e sobre esta pedra, erigireis tua Igreja. Na tradição cristã, a pedra angular - a que foi rechaçada pelos construtores (Lucas 20,17) - é a pedra do acabamento, da coroação, da cumeeira, a chave da abóbada. Ela foi substituída pelo pão. E Beith-el (casa de Deus) converteu-se em Beith-Iehem (casa do pão), e o pão eucarístico substituiu a pedra como lugar da presença divina.
A vinda dos escravos ao Brasil fez com que homens, mulheres e crianças, pertencentes a reinos, nações, clãs, linhagens, aliados e inimigos, caçadores da medicina natural se encontrassem e redimensionassem as suas tradições culturais e religiosas. Essa era a única maneira de confrontar a opressão religiosa católica que se fez acompanhar não apenas dos grilhões de ferro que aprisionavam os corpos dos negros, mas também do "aspergir" da água benta, do nome novo marcado a ferro em brasa nas regiões corporais, onde a carne não fosse comprometida e perdesse seu valor de compra e venda: de mercadoria. E tudo isso ao som entoante do "em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo". Catequese e escravidão andavam de mãos dadas. Os navios negreiros eram batizados com nomes da Virgem: Imaculada Conceição, Mãe de Deus, etc. muitos padres e ordens religiosas eram possuidores de escravos. Os sofrimentos de Cristo eram exemplos de redenção para o sofrimento imposto pelos católicos brancos. A expressão religiosa africana foi vista como num espelho pelos colonizadores, o que não era o reflexo nu e cru, da sua cultura eurocêntrica e da sua religiosidade católica romana, deveria ser banido, aniquilado e/ou demonizado. Tudo o que não era o seu espelho, o seu igual, era demonstração de "possessão demoníaca" e suas consultas aos oráculos, sacrifícios propiciatórios e outros rituais, eram estigmatizados como bruxaria ou "magia negra". As almas católicas viviam rogando pragas, maldições e conspirando em sintonia com o bom-tom hipócrita das cortes da Europa. Mas... os negros souberam se apropriar das formas de organização religiosa dos colonizadores e criaram, como forma de confronto, suas irmandades religiosas próprias, notadamente as de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e da Boa Morte. Por meio delas e da contribuição dos seus filiados, buscavam formar pecúlios suficientes para a alforria dos seus membros e garantir um enterro digno e "cristão" aos seus membros, onde eram mescladas as ladainhas católicas e os ritos funerários da nação africana do morto. Tudo sob as barbas da ignorância dos seus senhores e da fragilidade espiritual da maioria do clero branco, tão atento em coibir bruxarias, demônios, orgias, possessões, etc.
Em 1967, o papa Paulo VI lançava um documento oficial valorizando a religião africana e a colocando lado a lado das outras religiões universalmente conhecidas. Irônica ou intencionalmente, esse documento não foi suficientemente divulgado e amadurecido pelas comunidades cristãs; o que teria, sem dúvida, aniquilado muitos dos preconceitos e dos dogmatismos das igrejas locais. o mais importante é o fato de o Papa reconhecer a religião africana como positiva e não mais como uma religião não-cristã. Essa mudança de ótica legitima e estimula o reconhecimento da diferença como condição fundamental para um diálogo inter-religioso. "A vida espiritual é o fundamento constante e geral da tradição africana. Não se trata simplesmente da assim chamada concepção "animista", no sentido emprestado a esse termo na história da religiões, no fim do século passado. Trata-se, antes, de uma concepção mais profunda, mais ampla e universal, segundo a qual todos os seres e a mesma natureza visível se acham ligados ao mundo do invisível e do espírito. O homem, em particular, nunca é concebido, como apenas matéria, limitado à vida terrena, mas reconhece-se nele a presença e a eficácia de outro elemento espiritual que faz a vida humana ser sempre posta em relação com a vida do além. Desta concepção espiritual, elemento comum importantíssimo é a idéia de Deus, como causa primeira e última de todas as coisas. Esse conceito, percebido mais do que analisado, vivido mais do que pensado, exprime-se de modo bastante diverso de cultura para cultura. Na realidade, a presença de Deus penetra a vida africana, como a presença de um ser superior, pessoal e misterioso. A ele se recorre nos momentos mais solenes e críticos da vida, quando da intercessão de qualquer outro intermediário se julga inútil. Quase sempre posto de lado o temor da onipotência, Deus é invocado como Pai. As orações a ele dirigidas, individuais ou coletivas, são expontâneas e por vezes comoventes. E entre as formas de sacrifício sobressai pela pureza do significado o sacrifício das primícias(...) A participação na vida da comunidade, quer esta seja no âmbito da parentela quer no da vida pública, é considerada como um dever preciso e como um direito de todos, mas ao exercício desse direito se chega somente depois de uma preparação amadurecida, por meio de uma série de iniciações com o objetivo de formar o caráter dos jovens candidatos e instruí-los sobre as tradições e normas consuetudinárias da sociedade". Paulo VI. - Africae TerrarumMuita violência teria sido evitada se os católicos tivessem dado ouvidos e compreendido toda a riqueza dessas palavras do seu líder e pastor máximo. Poder-se-ia ter avançado, e muito, na troca permanente dos valores religiosos. Beber na fonte da tradição religiosa que originou Jesus de Nazaré e o cristianismo. Nada está em contradição. São outros momentos e outras culturas, outra vivências e expressões, outras faces de um mesmo Deus. "Eis porque o africano quando se torna cristão não se renega a si mesmo mas retoma os antigos valores da tradição "em espírito e em verdade." (Africae terrarum) Os tempos são outros... O Papa é outro nesse início de milênio. O brasil é outro e outra é a sua dimensão religiosa: plural e diversa. Jamais poderemos esquecer que, nos últimos vinte séculos, a África foi explorada pela Europa "cristã"...o império romano explorou o Egito tirando dele trigo, escravos e animais de carga. Os maometanos foram cooptados e organizaram o tráfico negreiro em demanda da Europa durante toda a idade Média, com a complacência da Igreja Católica Apostólica Romana. No século XIX, as potências européias "cristãs" ocuparam definitivamente a África transformando suas nações em protetorados.
As carnes nobres para a Casa-grande, o resto para a senzala. E a criatividade inventou a comida pela qual o Brasil é reconhecido no mundo; a negra feijoada dos negros baianos e mineiros. Sempre foi assim a festa comunitária dos negros. A comida farta de Ogum, guerreiro doa caminhos, a dança e os cantos, as roupas coloridas. Senhoras e senhores da folhas, dos chás e infusões que curam e aliviam a todos os que deles se servem. Generosidade e gratuidade são as heranças presentes, até hoje, na nossa cultura. A ganância e a avareza dos colonizadores e das igrejas foram vencidas pela grandiosidade dos gestos e pelo acolhimento da diversidade e da pluralidade vividas nos quilombos. As igrejas pragmáticas, e com ambição expancionista, procuram ocultar pelo tamanho dos seus templos a sua pequenez espiritual. Para elas, as festas religiosas africanas, nos seus barracões despojados, onde a comunidade recebe a todos, (não importando a cor, classe social, religião ou raça); onde a comida é repartida fartamente e onde cada filho e filha, generosamente, contribui com o que tem para a festa comum - tais festas só podem ser "uma barbárie". Imersas na sua ânsia-quase-vômito de poder e preocupadas com a eficácia e eficiência dos seus investimentos materiais, as igrejas há muito perderam a alegria da partilha e a comunhão da mesa. Depois de uma longa história de repressão religiosa aos cultos populares de origem africana e indígena, as igrejas mantêm ainda um sentimento de superioridade, separando a fé católica das elites brancas das práticas consideradas ignorantes do povo. Some-se a isso toda a cultura de segregação desenvolvida após a abolição que, pensando o Brasil em moldes europeus, isolava os negros, dando-lhes o estigma de malandros, criminosos, bêbados, desocupados e embusteiros. A eles coube os planos sanitaristas que visavam erradicar "as doenças dos pobres": varíola, febre amarela, tuberculose, etc. a urbanização das cidades seguiu o mesmo padrão europeu: boulevards e ruas largas para combater a herança africana em nossa cultura, vista como "primitiva e atrasada". Na religião o estigma foi de anátema. Interpretando, para a sua melhor conveniência, a religião africana como politeísta ( que acredita em vários deuses) e animista ( que atribui alma e vida a objetos inanimados) afirmava a inferioridade do negro em relação ao branco, cuja religião monoteísta era a descrita e de graus infindáveis de abstração. Na África, o culto tinha um caráter familiar e era exclusivo de uma linhagem, clã ou grupo de sacerdotes. As divindades iorubas eram cultuadas em suas cidades: Xangô, em Oió; Oxossi, em Keto; Oxum, em Ipondá, e assim por diante. Com a vinda ao Brasil e a separação ardilosa das famílias, das nações, das etnias, essa estrutura religiosa não pode se repetir e se fragmentou. Mas os negros criaram uma unidade nesta diversidade e pluralidade e puderam partilhar e comungar os cultos e os conhecimentos diferentes em relação aos segredos rituais de sua religião e cultura. E desta nova maneira de ser e viver, aberta a todos, surgiu a forma acabada do que se chama hoje candomblé. Foi a negação da originalidade do outro que fez com que tantas culturas e civilizações fossem destruídas. Algumas pessoas acabam querendo reduzir os outros a seu tamanho, à cor da própria pele, à sua maneira de pensar, de acreditar em Deus, tomado-se como única referência na vida e no mundo.
Olorum ama tudo o que criou e nos concede que o encontro entre os Orixás e a humanidade seja realizado em momentos de festa e alegria, na partilha da comida e da bebida, para que todos saibam da sua generosidade e misericórdia...

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